domingo, 29 de abril de 2012

Personificada

Autora: Paula Cruz
Técnicas: concept art literário, conto


Personificada


A Mentira tem pernas curtas. 

Isso todo mundo sabe muito bem.

O que poucos presumem é que a Mentira tem olhos furta cor, mãos gordinhas e um sorrisinho sutilmente endiabrado. Os olhos servem para uma inocente sedução ao próximo, as mãos fisgam pequenas travessuras e o sorrisinho é por tudo que ela vem a aprontar (ou que já está aprontando). As pernas crescem à medida que o tempo passa, de maneira que é possível, sim, uma Mentira ter pernas torneadas e longas. Sabe o físico de um jogador de vôlei? Ou de basquete? Pois então. É tudo uma questão de tempo e boa lábia, pois como todo ser (não) vivo, a Mentira nasce, amadurece, se reproduz e morre. Muitas vezes a Mentira dá luz à pequenas mentirinhas, que, num primeiro momento, parecem inofensivas e sem importância. 

— Tive uma reunião de trabalho marcada na última hora.
— Fui muito bem na prova, mãe.
— Vou voltar às dez.

Em pouquíssimo tempo, já se repara a maturidade chegando para as mentirinhas. Uma graça. 

A Mentira às vezes é mutilada por uma Meia Verdade. Há até quem diga que uma Meia Verdade também é uma Mentira. Nesses casos a Mentira anda de muletas, reclama dia sim, dia não, e segue com a vida. Fazer o quê? Tem mentira que só sobrevive por inércia. 

Outras são mentiras oficiais, top secret, coisa e tal. Essas mentiras nunca morrem, pois são ditas como Verdades. São pequenas espiãs camufladas que gostam de uma pose que não lhes é natural. A farsa que submete a todos e ninguém percebe — ou finge não perceber.

— O presidente? Nunca vi mais incorruptível. Yes, he can.
— Não sabemos nada sobre Roswell.
— Os jovens revolucionários lutavam pela liberdade de expressão.

O pior é quem passa a acreditar na própria Mentira. 

Também há mentiras com carteira assinada. São as dramaturgas, ligadas à ficção científica, à fantasia ou ao telejornalismo. Estas são as mais inofensivas, porque normalmente servem aos propósitos artísticos, literários ou cinematográficos. Normalmente. Mesmo assim, "de todas as mentiras, a arte ainda é a menos falsa".

A Mentira é onipresente. Quase involuntária. Tão sólida é que se desmancha no ar. Todos compactuam com ela, ao mesmo tempo em que todos são destratados pela mesma. Uma cigana de duas faces, uma faca de dois gumes, uma vítima-vilã. Tão ardilosa e, ainda assim, tão constante. 

Será mesmo que a Mentira tem pernas curtas? 

Enquanto isso, o sorrisinho endiabrado circula pela rotina. 
Que sina.

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